Jovem liderança indígena, Fêtxa Tapuya Guajajara, 21 anos, apresenta Santuário dos Pajés e luta para preservar a história dos povos Fulni-ô e Guajajara no Distrito Federal
Por Jucelene Rocha - Comunicação Cáritas Brasileira
Colaboração de Sandra Silva - Comunicação Cáritas Brasileira
Fotos: Tainá Aragão - Comunicação Cáritas Brasileira
Atualmente cerca de 160 pessoas vivem no território de 30 hectares e meio, equivalente a 30 campos de futebol, na região Noroeste de Brasília (DF). O território conhecido como Santuário dos Pajés segue ameaçado pelo mercado imobiliário que, desde 2008 tomou da comunidade indígena, pelo menos 72 hectares de terra para construção de condomínios de luxo. Na época da inauguração, esses condomínios representavam um dos metros quadrado mais caros do Brasil e, contraditoriamente, autodenominavam-se como primeiro empreendimento imobiliário ecológico e sustentável do país.
Mas ali, bem ao lado dos grandes condomínios de luxo estavam as famílias Fulni-ô, Guajajara e Wapixana, defensores do Cerrado e do território — que pra eles é sagrado — testemunhando e sofrendo as consequências da construção desses empreendimentos. De uma hora para outra Fulni-ôs, Guajajaras e Wapixanas viram-se em meio a uma grande luta com a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) e com forças políticas e econômicas que capitaneavam a construção do Noroeste.
Lideranças indígenas como o pajé Santxie Tapuya enfrentaram tratores, capangas, mega empresas e o próprio governo em defesa do Cerrado, uma vez que os empreendimentos foram erguidos dentro de uma unidade de conservação. O conflito começou em 2008, quando lotes do setor Noroeste começaram a ser vendidos. De fato, apesar de conseguir manter 30 hectares do território original, o líder Santxie Tapuya, não conseguiu evitar que edifícios de alto padrão fossem construídos sob um cemitério indígena e sob um importante aquífero. Perdeu a vida em 2014, mas segue a luta, hoje conduzida pelo filho, jovem liderança indígena, Fêtxa Tapuya Guajajara, 21 anos.
Estudante de Ciências Sociais na Universidade de Brasília (UNB), Fêtxa teve que entender bem cedo o que significa ser indígena no Brasil, e mais, teve que lidar com o preconceito, com a burocracia e com a indiferença histórica com relação aos direitos das comunidades tradicionais no Brasil, para afirmar como seus antepassados: essa terra tem dono!
Numa tarde de segunda-feira, Fêtxa Tapuya Guajajara, nos recebeu no Santuário dos Pajés e nos apresentou o território, sua mística e ancestralidade. Saiba mais na entrevista:
Como vocês passaram a ocupar esse território que hoje conhecemos como Santuário dos Pajés?
Meu pai, (o Pajé Santxie Tapuya), saiu com 14 anos de Águas Belas (PE), foi morar no Rio de Janeiro (RJ) e aí ele se formou em administração e foi trabalhar na Funai. Antigamente ele trabalhava nos postos das aldeias, ajudando, por exemplo, no registro quando nascia um indígena. Num desses postos ele conheceu minha mãe, Márcia Guajajara, lá no Maranhão. Eram de etnias diferentes, minha mãe é Guajajara e meu pai é Fulni-ô. Além do Ia-tê que é o tronco linguístico Fulni-ô, ele dominava o Tupi, que é a língua da minha mãe. Naquela época, etnias diferentes não podiam casar, e aí minha mãe veio para esse território com ele e me teve aos 15 anos, eu acho. Meu pai já era um pouco mais velho. E a partir disso começou a linhagem da minha família, e desde então ocupamos e reivindicamos esse espaço.
Meu pai veio direto pra cá porque ele já ouvia as histórias dos avôs dele, tinha o Têjê Veríssimo, o índio Juscelino, que já trabalhavam aqui, na época da construção de Brasília. E aí quando eles voltaram pra aldeia, em Águas Belas (PE), eles falavam desse espaço e como esse espaço representava alguma coisa para o movimento indígena, naquela época já se falavam em terras indígenas. Tem uma coisa que me pergunto muito: será que eles já tinham o entendimento do que seria Brasília?
O fato é que eles voltaram para Águas Belas e falaram do espaço, que tinha essa energia! Uma prova dessa ocupação remota é que aqui dentro do Santuário temos dois cemitérios indígenas, um mais antigo, que ajudou inclusive no processo de demarcação do território, porque ele prova que já existia terra indígena aqui, já existia indígena aqui. E tem um mais recente.
Antigamente esse território era conhecido como fazenda Bananal, por causa do córrego do Bananal. E ai meu pai fez um encontro de Pajés, e veio Pajés de várias aldeias, porque era muito fácil meu pai falar que tinha uma conexão com a terra, mas só ele falar isso não era suficiente, então ele convocou outros Pajés, que reconheceram o que ele falava, reconheceram que a terra era realmente um lugar de força e conexão espiritual. Então veio meu avô por parte de mãe, que é Pajé e reconheceram esse espaço, e aí pediram pra trocar o nome pra Santuário Sagrado dos Pajés, porque não teria mais sentido chamar Chácara Bananal.
A demarcação do território ainda é uma das principais lutas dos povos indígenas. Como foi o processo de demarcação do Santuário dos Pajés?
Dentro dos hectares do Santuário havia quatro cemitérios, eram mais de 102 hectares. Então era muita terra, hoje em dia a gente conseguiu demarcar 30 hectares e meio. O governo só queria deixar quatro hectares, e aqui dentro somos mais de três povos indígenas, tendo a presença mais fixa dos Fulni-ô, Guajajara e Wapixana. Mas acolhemos, por exemplo, estudantes de outras etnias. Aqui somos basicamente 150 pessoas, mais ou menos, porque as famílias vão pras comunidades e outras voltam. Mas ao todo agora somos em torno de 60 a 68 famílias. Antes dos conflitos da terra, a gente tinha uma estrutura melhor pra receber os estudantes, depois do conflito da terra a gente perdeu muita coisa. Perdeu a oca das mulheres, a oca das crianças.
Nossas casas antigamente eram mais tradicionais, eram casas de palha, oca de palha que a gente fazia mesmo com coqueiro. Por exemplo, esse coqueiro (aponta para a planta), vem lá de Pernambuco, que é o coqueiro Ouricuri, da comunidade de Águas Belas. Tem plantas que vieram de outros lugares da Amazônia, do Nordeste principalmente, que os indígenas trouxeram pra cá. E aí, antigamente quando eles vinham ficavam por aqui. Agora só ficou a oca dos homens, que meu pai ficou com medo de alguém atear fogo nela e fez assim (de alvenaria). E a casa da minha mãe também mudou rápido. E a gente começou a trazer as coisas mais pra próximo, a roça está mais próxima agora. Antigamente esse território era todo utilizado. As pessoas também moram mais pra trás porque elas preferem não ter contato muito aqui na frente, porque aqui na frente já fica muito próximo do Noroeste (Local onde estão os empreendimentos imobiliários que ameaçam o Santuário dos Pajés).
O santuário é um lugar de apoio até hoje pros indígenas virem, porque eles entendem a história do meu pai, que lutou por décadas pra demarcar o Santuário e morreu aqui dentro na luta.
Na varanda da casa da família fotos e objetos preservam a memória do Pajé Santxie Tapuya, no centro o cocar de penas pretas usado pelo líder indígena.
Este é um território bastante cobiçado, e hoje já ocupado, pela especulação imobiliária...
Sim, temos um território razoavelmente grande, ele tá do lado do bairro mais caro de Brasília, o Noroeste. Na época da inauguração dos prédios era o metro quadrado mais caro do Brasil. A propaganda que fazem é de que o Noroeste é um bairro ecológico, como eco vila. Mas, como que derrubar metade de uma das únicas faixas verdes de Cerrado que tinha, pode ser considerada uma ação que combine com essa propaganda? Antes da construção do Noroeste, aqui era a segunda área mais preservada de Cerrado depois do Parque Nacional de Brasília, com a construção vieram várias questões.
Hoje em dia a gente não vê mais tamanduá bandeira, cobra raramente a gente vê, aqui passava arara azul, papagaio, periquito, tucano… hoje é bem raro por causa do desequilíbrio. Aqui nesse território temos o mini aquífero Tapuia, o bloco A dos prédios está em cima de uma nascente, e o bloco B em cima de um cemitério indígena. Esses dois blocos aqui da frente, que era pra ser território indígena, tiveram até um problema não conseguiram vender apartamentos por uns três anos, quase demoliram o prédio porque estavam no território, e teve toda uma discussão e então a gente cedeu essa parte da frente pra ganhar nos lados e atrás.
Seu pai, o pajé Santxie, foi uma liderança indígena importante na história de lutas por demarcação. A morte dele nunca foi devidamente investigada. Conta um pouco dessa história pra gente?
Meu pai faleceu em 2014, o laudo do Instituto Médico Legal (IML) fala que ele morreu de infarto fulminante, mas se negaram a fazer outros exames como, por exemplo, toxicológicos. O laudo diz que ele teve infarto, mas a família acredita que tenha sido outra coisa, ainda mais porque se recusaram a fazer o exame toxicológico. Ele morreu com 58 anos, há seis anos. Foi uma perda muito grande pro Santuário. E permanecemos aqui, mesmo sem ele porque a gente pensa muito na ligação espiritual que a gente tem com a terra, porque se fosse pra vender esse território já teríamos vendido, já ofereceram quatro milhões. A gente não quer dinheiro, porque vemos o Cerrado como um ser vivo, a gente cuida dele pra depois ele cuidar da gente, quando a gente morrer.
Nessa história, também tem muito da questão política, meu pai era chamado de Pajé Santxie, então imagina, ele ser enterrado aqui seria um peso maior pra causa da demarcação e, por isso o governo não queria que ele fosse enterrado aqui, a Funai não queria que ele fosse enterrado aqui. Eles sabiam o símbolo que ele iria se tornar aqui. Ele foi sepultado na aldeia em Águas Belas, e foi assim morreu hoje e no outro dia já estava sendo levado pra lá. Eles não deram ouvidos pro que a família queria. Até ele mesmo falou que queria ser enterrado aqui, mas isso foi ignorado.
Foi muita correria, ele foi no translado de madrugada, eu e meu irmão fomos no ônibus da Força Aérea Brasileira (FAB), com os deputados pra Pernambuco, porque não tinha mais avião, e a gente foi sem nenhuma explicação. Eu tinha 15 anos quando ele morreu, meu irmão tinha 13, foi muito rápido. Meu pai é o primeiro da nossa linhagem que morre de infarto. Minha mãe sustentou o baque por aqui. Ela não foi. A gente entendia que se fosse todo mundo pra Pernambuco a gente podia voltar e não ter mais nada, ela ficou aqui pra proteger o território. Quando ele morreu as construtoras e imobiliárias vieram em peso. Ainda bem que a gente não vendeu, porque toda a nossa história, a história do meu pai e da minha mãe tudo tem ligação com o cerrado. Eu posso falar, por exemplo, aquele coqueiro veio da minha casa lá de Pernambuco, tem outras árvores que os Pajés entregaram, por exemplo, pensando: “vamos deixar essas plantas aqui pra quando a gente estiver em Brasília, a gente pode passar lá e pegar um pouco pra fazer medicamento, algum ritual”, ou coisa assim.
Hoje você é reconhecido como um jovem líder indígena. Como foi assumir de forma tão precoce as responsabilidades que seu pai tinha?
Quando meu pai morreu eu estava no finalzinho da infância, aos 15 anos, queria ficar lendo porque meu pai me acostumou a ler. E quando ele faleceu, eu comecei a ter que ler documentos e me apropriar, 200 páginas só de introdução, e meu pai falava outras línguas, não só 10 línguas indígenas do Brasil, falava também espanhol e inglês. Ele morou quatro anos com os povos indígenas dos Estados Unidos e voltou com as tranças indígenas de lá que viraram uma marca registrada dele. Com 15 anos comecei a ir em reuniões, a viajar, meu pai viajava muito levando a história do Santuário. E também quando ele morreu gerou um caos, porque os amigos do meu pai vieram. Meu pai era muito amigo do cacique Raoni Metuktire, por exemplo, eu chamava o cacique Raoni de tio naquela época. Ele sempre vinha aqui quando estava em Brasília. Nisso eu já sabia mais ou menos quem eram as lideranças indígenas e o que elas faziam, quem era pajé e quem era cacique e o que elas faziam no nosso meio indígena, e a partir disso comecei a me portar melhor e a falar melhor, e desenvolver meu português, que era muito ruim.
Sempre morei aqui, na época dos conflitos por causa da construção dos prédios do Noroeste, meu pai enfrentou tratores e recebeu ameaças dizendo que sabiam onde os filhos dele estudavam, qual escola, isso em 2006. A gente foi pro Maranhão e a gente voltou no segundo semestre de 2011. Desde 2011 a gente tá aqui.
Você sofreu alguma forma de preconceito?
Pra mim era uma loucura, porque minha educação sempre foi bilíngue, o português, o Ia-tê e o tupi da minha mãe. Então, além de falar português tive que dominar bastante minha língua. Tem momentos que tenho que pintar meu corpo todo, e eu tinha que conviver com isso e ter que ir pra escola.
No ensino médio eu pensava: vou entrar em uma universidade e não vou precisar me reafirmar indígena todos os dias, não vou precisar falar dos meus traços, não vou precisar explicar pras pessoas não terem medo de mim quando eu estiver usando sei lá, uns colares a mais ou adereços, ou a pintura. Eu achei que seria uma maravilha! Mas, o que não foi muito bom pra mim na verdade foi a faculdade. Cheguei lá e minha saúde mental foi pro ralo.
Quando eu ia pra escola com algum resquício das pinturas no corpo, as crianças não queriam pegar na minha mão, por conta do jenipapo (tinta usada para a pintura do corpo), o pessoal não entendia, ficava com nojo, foi uma coisa de preconceito mesmo e racismo. E eu chegava em casa e falava pro meu pai: “pai falaram que eu era carniceiro, que eu era selvagem que tinha que andar pelado, o que é isso?”, e ai meu pai sempre me explicava. E quando ele faleceu, com o Noroeste quase construído foi horrível e comecei a frequentar lugar de gente grande, com pessoas de 30, 40, 60 anos e eu com 15 anos. Pensando será que vou passar nessa matéria e, ao mesmo tempo, participando de uma reunião super importante, não podia errar, tinha que demonstrar sabedoria e ser sério em tudo. Foi uma loucura lidar com a dualidade. Saber da minha história, dos meus rituais, de entender quem era meu tataravô, meus antepassados e o que eles fizeram e viver do lado de Brasília onde ser indígena era uma coisa surreal, e naquela época o pensamento comum era que todo indígena tinha que viver na Amazônia, andar pelado e falar tupi-guarani.
Teve momentos, na faculdade particular que eu cursava Direito, em que fui usado como exemplo de cotistas, mas eu não tinha entrado com cota, eu estava pagando como qualquer outro. A impressão que eu tinha era de que eu estava sendo mais estudado do que as matérias de Direito, virei objeto de pesquisa. Hoje faço, Ciências Sociais na Universidade de Brasília (UNB), não é também tão fácil assim, mas tenho família lá, tenho primos e família lá dentro e a gente vai todo mundo sofrer junto.
Fêtxa Tapuya Guajajara apresenta o interior da Casa de Reza: A gente senta ao chão, e aí olha
pra cima é como se esse santuário fosse uma árvore. A gente olha pra copa da
árvore. Ele tem esse formato redondo pra significar o tronco e as raízes também na
parede e indo pro chão… O Santuário tá aqui e faz parte do cerrado, é um ser
dentro do Cerrado. Conta a jovem liderança indígena.
Quais são os principais desafios hoje para vocês que vivem no território do Santuário dos Pajés?
Apesar de já termos a terra demarcada a gente ainda tem muito medo. Até porque, atualmente o presidente do Brasil tem o discurso muito anti-indígena, a gente tem medo de a qualquer momento não termos mais a terra demarcada. Temos ouvindo muito falar disso.
A Funai hoje em dia é agronegócio, né? É agro. Já tem mais ruralista lá dentro do que indígena mesmo. A gente recorre muito à 6º Câmara (Câmara temática do Ministério Público Federal que trata de temas específicos das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais), recorremos também à redes internacionais. Vem gente de todo lugar aqui conhecer e levar um pouco dessa história. Muito do apoio que o Santuário conseguiu foi internacional mesmo.
Hoje em dia a gente não tem mais Pajé, o último foi meu pai mesmo. O povo me chama de cacique, mas eu não gosto muito do termo não. Prefiro ser liderança jovem mesmo, porque eu acho que cacique é quando eu for mais velho. Mas o que eu faço é a função do cacique, que é a função política, digamos assim.
Entre as comunidades indígenas há muitas lideranças jovens como você?
Eu vou fazer 21 esse mês, e se temos muita liderança jovem é porque os velhos estão sendo assassinados, estão sendo mortos. O que resta é a juventude e a gente tem que lutar mesmo, e eu levo muito essa pauta da juventude indígena com muita força, porque é uma pauta minha, eu gosto e me sinto à vontade. É o meu lugar de fala também.
Eu conheço muitas pessoas de vários lugares, de várias comunidades, porque eu viajo muito e acabo conhecendo, até fazemos uma piadinha interna assim de que filho de liderança conhece os filhos de liderança. A maioria dos meus amigos indígenas são filhos de cacique ou de pajé, ou de alguma liderança interna. A gente acaba fazendo uma rede, não só do meu povo, mas de vários povos e isso é o legal. Entre nós existe essa rede de ajuda. Quando viajei pra Dourados, eu fiz um contato com os Guarani, os Terena, entre outros indígenas. A gente passou uma semana numa comunidade que eles tinham reocupado, foi muito forte. A violência que passa na mídia a gente viu pessoalmente. Quando a gente chegou o filho de uma indígena lá tinha morrido assassinado a tiros horas antes de chegarmos. E a gente vivenciou aquilo junto com todo mundo, compartilhamos a dor. Por isso procuramos fazer uma rede de cuidado, e a gente sempre sabe o que tá acontecendo um com o outro.
Outro Guajajara que morreu, dos guardiões da floresta, um deles que morreu era primo da minha mãe. Sabe, da família. É muito próximo que acontece, também, não é tão longe é super próximo, é aqui, acontece na família. Ao mesmo tempo em que a gente apoia outras comunidades, outros povos, eles também apoiam a gente.
Agora nesse período do Carnaval, a juventude indígena do meu povo, do Maranhão e de Pernambuco, vai fazer uma nota sobre fantasias com temática indígena. É muito da juventude esse tipo de ação para tratar as questões, as pautas que achamos importante. Entre a juventude indígena tem muita pauta LGBT, por exemplo, porque os mais velhos não falam tanto, mas a juventude tá começando a caminhar nesse diálogo. Por exemplo, tem uma página visibilidade LGBT indígena, no Instagram, e é surreal como tá crescendo. Outras pautas são gravidez na adolescência, casamento forçado, coisas mais assim, digamos de empoderamento, não um feminismo branco, mas um feminismo das mulheres indígenas. O que elas acham que é necessário pra aquele momento, por exemplo, mulheres ocupando espaços, mulheres se tornando Pajés, Caciques. Todo mundo acha que só homem pode ser, mas hoje em dia temos mulheres, as mulheres estão saindo mais da cozinha e da roça e estão se tornando lideranças.
O movimento de mulheres indígenas tá muito grande, não é à toa que ano passado teve a marcha das mulheres indígenas. São tias minhas, primas, minha mãe também faz parte do movimento mulheres indígenas do Distrito Federal. Assim você vai vendo que a juventude vai trazendo uma pauta que as mulheres já tentavam fazer antes, mas não tinham força e unindo essas causas com as causas da juventude elas estão abrindo mais espaços para a voz feminina.
Minha tia Cíntia é mestra, ela é professora do Tupi, da cultura, pra mim ela é uma inspiração, junto com minha mãe. Também me inspiro muito em tia Soninha (Guajajara), saber de onde ela veio e como conquistou um espaço na política.
Falando em política, quis são as principais pautas das comunidades indígenas?
Tirando as pautas normais de educação, saúde e demarcação de terra, eu acho que a principal pauta nesse momento é a luta por nossa sobrevivência mesmo. Eu acredito que existe uma política de extermínio aos povos indígenas. Apesar de eu poder falar porque estou vivo, mas por exemplo, meu pai já morreu, minha mãe sofre ameaças, todo mundo sofre ameaças por causa da terra que a gente luta… Então assim, a política de morte aos indígenas é diária. Tios já morreram, primos meus já morreram, então o desafio mesmo é manter a juventude viva, poder dar um futuro pra minha irmã, poder dar um futuro pro meu irmão que é mais novo que eu, futuramente aos filhos, aos netos e falar que não precisa ter medo. O desafio daqui pra frente é não morrer, mesmo. O extermínio e o genocídio indígena tá imenso!
Desafio mesmo é não deixar esse retrocesso crescer, e ter o nosso direito à vida, né? Que é o que eu falo, todo mundo tem direito à vida, mas não o indígena, porque se o indígena lutar pela terra, ele tá visado de morte. Se o indígena lutar pela água, tá visado de morte, se lutar pela espiritualidade dele, tá visado de morte… Todo caminho que o indígena trilha leva a alguém que vai matar ele de algum jeito. Então o desafio maior é ter esse direito à vida mesmo.
É preciso mostrar que a juventude indígena tem voz, que a gente pode falar, que a gente pode aprender também e ensinar muito com os mais velhos, os anciões e se tornar lideranças boas pras comunidades. Ser liderança jovem não é fácil, é cansativo, é chato, às vezes você quer tá na cama, mas você tem que ir pra luta, e como nasci já em território de luta, em berço de luta, já tá no sangue essa resistência. O desafio é conseguir vencer o retrocesso, lutar pela nossa vida, ficar adulto e ficar velhinho e morrer com 102 anos pra frente.
O que você tenta construir para o futuro, como uma liderança jovem?
Eu não sei muito bem, eu estou seguindo uma força e seguindo meu coração. Eu estou lutando pelo que eu acho que é certo, pelo que eu sou. Mas, meu projeto pra esse ano foi trocar de curso, já consegui, saí da universidade particular que acabou com minha saúde mental. E a outra meta é mais pra cá pro Santuário, de estrutura mesmo. Botar uma escolinha bilíngue aqui pra dentro. Minha mãe está reunindo mulheres pra levantar a oca das mulheres de novo, ter a biblioteca, a gente ganhou livros em uma ação, mas não temos o espaço da biblioteca. Enfim, ter uma estrutura melhor aqui no Santuário, pra mostrar que a gente não morreu.
Eu consigo viver essa dualidade, entre ser indígena e morar na capital e não me perder. Minhas raízes são essas. A gente acredita que o grande espírito guia e ele pré-determina o que tá escrito. Essa é a minha vida. Eu vivo aqui, eu vivo na cidade, lá eu boto um tênis e aqui eu faço minha pintura. Na cidade eu boto minha cara a tapa também, se não quiser triscar não trisca, se quiser perguntar, pergunta. É sempre ensinando e aprendendo ao mesmo tempo. Eu gosto muito dessa troca de saberes, hoje em dia eu gosto muito de aprender, essa foi uma das melhores qualidades que meu pai me deixou. A gente acredita que quando um mais velho morre ele deixa certos dons com seus filhos. Meu irmão pegou o lado da arte, eu peguei da comunicação. Eu via 150 pessoas sentarem e ficarem olhando e escutando meu pai por três horas sem sair do lugar. E hoje em dia eu vejo isso acontecendo comigo, eu gosto muito desse lado de conhecer outras pessoas, outras realidades, poder viajar, poder conhecer outros povos indígenas, outras juventudes indígenas.
Na porta de casa Márcia Guajajara, mãe de Fêtxa Tapuya Guajajara, acompanha parte da entrevista e também destaca a luta e conquistas das mulheres indígenas.
Sua fala faz pensar uma cultura indígena em movimento, é assim que vocês percebem também?
Eu acho isso muito massa. Às vezes, nem eu acredito que estou na frente disso, porque a cultura mudou tanto! Hoje em dia a gente consegue estampar algum movimento na blusa, ter pessoas que tão levando a cultura através de vídeo, de fotos, da parte mais audiovisual. Então eu vejo que a cultura realmente não parou. Pegou novos caminhos, pra ser levada a algum lugar. Por exemplo, tem lugares que eu não quero me pintar, não quero que a pessoa veja minha pintura, mas uso uma camiseta com a estampa de uma pintura que tem significado pra gente. Então, eu posso botar aquela roupa em mim e ir aonde quiser. Estou levando minha cultura, é um modo de ocupação e demarcação de território. Por exemplo, as pessoas vêm aqui e compram artesanato, levam uma muda de planta, trazem uma muda, eu vejo aquilo também como um modo de levar a cultura, porque todo artesanato tem uma história, significado, energia, porque muitas vezes, os traços nascem em sonhos e visões e só o artesão que sabe. Então a cultura tá ai em tudo. Na universidade sempre sou convidado pra dar palestra, pra fazer o toré, que são as danças. Então, a cultura saiu da comunidade e tá sendo mais conhecida no meio não indígena. E eu sempre falo que todo modo de ocupação é um meio de resistência, é um protesto.
A cultura é um caminho, porque quando as pessoas nos conhecem elas querem saber por que é tão bonito, por que é tão forte, por que é tão colorido, por que os traços são mais finos ou mais grossos, por que o preto, o vermelho, o barro, o amarelo, ou branco? Eu acho que a cultura é a linguagem mais forte pra mostrar quem a gente é como indígena.