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Entrevista: Biomas ameaçados colocam em risco direitos fundamentais das pessoas e da natureza

Áreas de Atuação

Assessor nacional da Cáritas Brasileira, João Paulo Couto, destaca a urgência de mobilização e incidência em defesa dos biomas brasileiros

Publicação: 29/01/2020




Por Tainá Aragão - Comunicação Cáritas Brasileira

Fotos: Tainá Aragão


“Como conviver com os biomas no ritmo do descarte?” Essa é uma questão latente que percorre o século, uma vez que o consumo exacerbado rege os hábitos de grande parte da população mundial. O modelo de consumo praticado atualmente, somado à expansão da monocultura, estimula a exploração de matérias primas que, por sua vez, impulsiona uma relação predatória com o meio ambiente.

Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Pantanal, revelam a diversidade dos biomas no território brasileiro e estão em crescente ameaça nos últimos tempos. Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontaram que entre 2018 e 2019 houve um aumento de 30% nos desmatamentos na Amazônia, por outro lado, em menos de 30 anos, o berço das águas, o Cerrado, pode ter um grande número de suas plantas nativas na lista de extinção. Essa é a tese do artigo divulgado por pesquisadores do Instituto Internacional para a Sustentabilidade (IIS), publicado na revista cientifica Nature Ecology and Evolution

Inúmeros estudos comprovam que para conter a onda de escassez que se aproxima é urgente promover a mudança dos hábitos de consumo, bem como das estruturas produtivas e socioeconômicas. Frente a essa lógica, a Cáritas Brasileira propõe a convivência com os biomas, uma perspectiva de sociedade pautada no Bem Viver, dando particular atenção às comunidades tradicionais, rurais e urbanas, e trabalhando em vista da proteção, conservação e garantia dos direitos da natureza, além do fortalecimento de novas economias que priorizem a diversidade socioambiental.

No olhar do mineiro João Paulo Couto, 52, Assessor Nacional da Cáritas Brasileira para a área de atuação Convivência com os Biomas, o direito à natureza é garantido por meio do engajamento e participação das comunidades na defesa dos biomas. Portanto, a via de transformação para outro futuro possível está na cotidianidade, assim como na aproximação afetiva das comunidades com o seu próprio território. 


Confira a entrevista:


Você pode contar um pouco da sua trajetória na Cáritas Brasileira enquanto assessor nacional na área de atuação Convivência com os Biomas?

Sou agente Cáritas desde 1998, estive até 2015 na Cáritas diocesana de Pacaratu (MG). Lá, eu tinha uma atuação voltada para a área de convivência com os biomas porque os projetos e programas incidiam nessas temáticas. Eu assumi essa área no Secretariado Nacional em 2018, muito por meio do incentivo da Campanha da Fraternidade (CF) de 2017, quando esse tema veio a ser definido como uma área de atuação da Cáritas Brasileira (CB). Então, a CF contribuiu muito para inspirar a Cáritas a assumir essa temática. 

Quando eu assumi a gente estruturou uma Comissão Nacional de Biomas que é um dos espaços de gestão da CB. Tivemos muitos desafios por ser um tema novo na Rede Cáritas, mas a Comissão contribui muito na medida em que traz um representante de cada uma das cinco grandes regiões do Brasil.

Eu comecei a ter uma ação maior no Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, um fórum que tem uma coordenação em Brasília e um grupo executivo com cerca de 30 entidades participantes.

No Fórum estamos contribuído com a área de formação em biomas e nessa discussão, muitos agentes Cáritas participam também. Então, é um espaço em que a CB contribui com grandes mobilizações, visando também a formação de outros agentes que estão espalhados nesse Brasil afora.

A formação vem acontecendo através de uma plataforma online. Em 2020 avançamos para o 4º ano dessa metodologia de formação. De 2018 para cá, também ingressei como representante da CB na direção da Frente Nacional por uma Nova Política Energética, onde ampliamos mais a ação da CB no tema das energias renováveis, com a instalação de placas fotovoltaicas em diferentes regiões do país. Participando desses espaços vamos retroalimentando a Rede Cáritas.


Quais são os principais desafios da atualidade em trabalhar com temas ligados à convivência com os biomas no Brasil?

Os biomas estão sendo destruídos, dizimados. Se pegarmos a experiência do Cerrado, que segundo dados oficiais mais de 70% do bioma já está destruído, e não tem volta, a gente pega a questão do desmatamento da Amazônia que tem se intensificado com o agronegócio, uma das principais ações que comprometem os biomas, não dá pra classificar apenas uma problemática. 

O povo precisa compreender um pouco mais o que é um bioma, a gente percebe que é preciso entender profundamente para agir e fazer frente àquilo que estão destruindo aos nossos olhos. Precisamos anunciar o que está acontecendo de bom, mas também fazer denúncias para conseguir paralisar a destruição dos biomas.

Já pra CB, o desafio é no âmbito de fortalecer a Comissão da Convivência com os Biomas, fortalecer ações de formação da Rede Cáritas. As diversas ações que estão acontecendo, precisam ser reconhecidas e sistematizadas junto à defesa dos biomas, essa grande comunidade de vida, formada pelo conjunto de ecossistemas, e que estão gritando, hoje o momento é dramático para todos nós, população brasileira.


Porque as temáticas ligadas à convivência com os biomas muitas vezes são colocadas em segundo plano da sociedade atual?

Hoje, eu percebo que as pessoas, as comunidades e as áreas urbanas têm um ritmo de vida dominado pelo capitalismo que não permite que as pessoas voltem seu olhar para viver em comunidade. Não tendo uma convivência comunitária as pessoas se sentem distantes, e com a cultura individualista acabamos não discutindo a questão dos biomas, não promovemos a convivência com os biomas.

O capitalismo é muito responsável pela cultura individualista colocada a todos nós, mas eu percebo que ainda falta muito pra compreender, porque as pessoas interagem com os biomas, mas não conseguem enxergar que o bioma está sendo destruído. Alguns momentos até enxergam, mas não refletem sobre as consequências que a destruição ambiental pode trazer pra as suas vidas. O nosso ritmo hoje é o ritmo do descarte, a gente descarta tudo, incluindo animais, percebemos, mas não paramos para refletir.

Hoje as pessoas vivem correndo para ganhar dinheiro, vivem atrás da sua proteção, do seu ciclo familiar, mas não se abrem para o outro, então, se a gente não se abre para o outro se torna impossível discutir biomas ou outra configuração de sociedade.


Como a temática contribui para a construção do Bem Viver?

Eu vejo que o Bem Viver que é uma discussão que vem ganhando corpo e forma na Cáritas, eu acho que é um tema muito oportuno pra gente fazer essas discussões, porque trata da vida e de questões fundamentais pra termos mais saúde integral. 

Através do Bem Viver a gente discute um leque muito grande de questões. A convivência com os biomas contribui com a construção do Bem Viver através das ações locais. A gente percebe que na medida em que as pessoas se articulam em comunidade para implantar um projeto ou fazer uma reflexão, constrói-se o Bem Viver.

A sociedade precisa compreender o que vem de bom. Na maioria das vezes, são das comunidades organizadas, são dos pequenos espaços que se fazem grandes ações. Em todo esse tempo nós estamos construindo a prática do Bem Viver. Avançamos muito porque temos reflexões e práticas nessa área. Percebo que ao avançar com a discussão e atuação na defesa dos biomas, estamos contribuindo diretamente com o Bem Viver, as duas coisas são inseparáveis.


Qual o impacto para o fortalecimento das ações em vista da convivência com os biomas, a partir dos resultados do Sínodo da Amazônia?

O Sínodo da Amazônia trouxe uma série de discussões interessantes para que organizações como CB e outras que trabalham com meio ambiente possam prosseguir. Eu quero destacar que o direito da natureza foi muito explicitado,  voltado para a questão dos animais, das pessoas, das plantas. Então, o desafio foi colocado através dos resultados sistematizados.

Temos um grande desafio enquanto instituição de promover nos próximos anos de trabalho, o direito da natureza como uma prioridade. A partir disso, iluminados pelo Sínodo, precisamos  provocar muitas discussões.

O Sínodo não foi apenas um evento que terminou em si, mas provoca uma série de questões que as instituições precisam continuar discutindo e implementando. Eu acho que se não entrarmos em incidências para políticas públicas e ações na Igreja não conseguiremos avançar em resultados concretos. Os resultados do Sínodo estão aí, precisamos aproveitar esse momento e nos unir em um grande mutirão para trabalharmos de forma prática.


Como você avalia a atuação da Cáritas Brasileira em temáticas que tangem a convivência com os biomas em nível nacional? 

Como é uma área nova para CB ainda estamos em fase de experimentação dessa discussão. Precisamos avançar e fortalecer essa temática juntamente com outras áreas de atuação, precisamos intensificar essa interação. 

Outro ponto é ter a convivência com os biomas como um programa, refletir mais sobre isso, para uma reflexão interna, a fim de criarmos um programa nacional de biomas. A Comissão Nacional deve ser responsável por isso. Precisamos discutir mais as nossas ações e como podemos criar momentos para fazermos essas reflexões conjuntas.


Quais são os principais projetos em execução pela Cáritas Brasileira para o fortalecimento da convivência com os biomas?

São diversos projetos, é claro que existem projetos que são executados pelo Secretariado Nacional e outros diretamente pelos escritórios regionais da Cáritas ou pelas Cáritas Diocesanas. Os projetos que atuo diretamente na coordenação são os seguintes:

O projeto de Cisternas Quilombolas Kalunga, na Chapada dos Veadeiros, que abrange três municípios no estado de Goiás: Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Ali estão sendo implantadas 140 tecnologias de captação de água de chuva para as famílias quilombolas da região.

Encerramos em setembro o projeto Cisternas Mato Grosso do Sul, mas ainda estão sendo realizadas algumas ações para o fechamento desse projeto, diretamente em duas comunidades indígenas no município de Paranhos.

Temos no Regional Norte III, no Tocantins, o projeto Caminhos das Águas, uma proposta de revitalização de rios e nascentes que incide na questão da convivência com os Biomas.

Outro projeto que coordenei durante um ano foi o Energias Renováveis, ele tem execução no Piauí, trata-se de um apoio na geração de energia para famílias e empreendimentos pautados na Economia Popular Solidária, dos municípios de José de Freitas, Floriano e Nazária. 

No Pará temos o projeto Tapajós Solar, uma energia boa para salvar o nosso rio, que é executado em Santarém, no Pará. 

Na diocese de Patos de Minas temos o projeto Cuidando da nossa Casa Comum, também apoiado pelo Fórum de Mudanças Climáticas, realizado em territórios adjacentes a essa diocese. 

Estamos tratando de projetos que estão abrindo discussões importantes sobre as energias renováveis nesses territórios e também na instalação de cisternas para captação de água da chuva.


Qual é o perfil das pessoas atendidas pelos projetos?

Os atendimentos são realizados por comunidades, as pessoas estão inseridas nesses territórios. Não fazemos atendimentos individuais, portanto, trabalhamos com comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhos, famílias da agricultura familiar e, destaco aqui, assentados e assentadas da Reforma Agrária. 


Como você percebe o futuro da temática convivência com os biomas dentro e fora da Cáritas Brasileira? Quais são seus sonhos e expectativas?

Eu percebo que na medida em que se destrói um bioma, destruímos a nossa própria vida, não tem como a vida prosperar se não tiver a questão do fortalecimento da convivência harmoniosa com os biomas.

Precisamos ampliar o leque e ter uma base maior de formação para CB, e espaços de discussão, precisamos propiciar espaços, os agentes Cáritas devem se enxergar olho-a-olho para perceber o que estão fazendo e promover esse cruzamento de forças, para que a CB consiga ampliar os seus destinos.

Precisamos trabalhar a interface entre os programas, precisamos impulsionar a criação de políticas públicas para proteção dos biomas, precisamos avançar na conservação e proteção ambiental, para salvar rios, nascentes, florestas e vidas. Precisamos, como prática de futuro, pegar as experiências que já temos e comunicar em âmbito nacional. 

O sonho e a expectativa é que as pessoas assumam a responsabilidade pelo espaço em que vivem, trabalhem pelo fortalecimento e aproximação de suas comunidades com os biomas, com a vida que as cerca. Acredita que em comunidade, que é a nossa força comum, temos energia para construir outro futuro.


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