Irmã Dorothy Stang, com 74 anos, morta em fevereiro de 2005, no Xingu, estado do Pará - Foto: Carlos Silva/Imapress/Dedoc
Existem datas associadas a pessoas específicas. Na Amazônia brasileira, o dia 12 de fevereiro, desde 2005, é uma data que lembra a irmã Dorothy Stang, alguém que considerava a Amazônia uma terra querida, que não hesitou em dar a vida por uma causa, a causa dos povos que a habitam. Foi nessa data em que seu martírio fez dela um ícone de resistência, um exemplo a seguir.
Que na mesma data seja publicada “Querida Amazônia”, a exortação pós-sinodal nascida de tudo o que foi vivido durante a assembleia do Sínodo para a Amazônia, realizada em Roma, de 6 a 27 de outubro de 2019, e os dois anos em que, desde a escuta, foi preparado, é uma razão para pensar que tudo tem um motivo e que isso pode ser considerado como uma homenagem merecida a tantos mártires que deram a vida por algo que realmente queriam.
Um dos momentos mais emocionantes da assembléia sinodal foi a procissão que levou seus participantes da Basílica de São Pedro à sala sinodal. Entre os muitos símbolos que acompanharam os passos dos padres sinodais, auditores e peritos do sínodo, estavam cartazes mostrando mártires da Amazônia. O sangue dos mártires queria ser uma força que encorajava o espírito de homens e mulheres que durante três semanas iam procurar novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral.
Nesses cartazes apareceram as imagens de Alejandro Labaka e Inés Arango, Ezequiel Ramin, Chico Mendes, Josimo Tavares, Vicente Cañas, Cleusa Rody Coelho, Alcides Jiménez, Rodolfo Lunkenbein e Simón Bororo, além de muitos outros, também Dorothy Stang. Eles entraram e permaneceram na sala sinodal durante toda a assembleia, emanando a força daqueles que renunciaram a suas próprias vidas para que sua querida Amazônia e os povos que a habitam tenham mais vida. Mulheres e homens cujo sangue se tornou a semente de uma nova vida, da Páscoa.
São eles, e tudo o que defenderam, que ressuscitaram neste processo sinodal. Esses homens e mulheres são precursores da conversão para a qual o Sínodo da Amazônia nos chamou. Pessoas que não tinham medo de iniciar novos caminhos de evangelização, de ação pastoral, pessoas que insistiam em defender a Mãe Terra e aqueles que mantinham um relacionamento sagrado com ela, mulheres e homens que deixaram suas culturas para trás para assumir uma nova cultura, que foram descobrindo nos povos para onde haviam sido enviados, pessoas que não hesitavam em viver a sinodalidade, caminhar junto com os povos.
Um dos que melhor conheceu a vida e a missão da irmã Dorothy é dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu. Ele reconhece que "o que me impressionou, desde que ela chegou aqui, em 1982, é a sua opção radical pelos pobres". O bispo lembra que "foi para uma área que naquela época era, não apenas de pobreza, mas de miséria". Ele ainda destaca que “eu quase não acreditei no início, porque essa mulher vem lá dos Estados Unidos, do conforto e tudo o que tem lá naquele país, e vai se meter numa situação, numa realidade tão cruel. Mas ela foi, e ficou até o dia da sua morte”. O exemplo da irmã Dorothy, é apenas mais um entre os muitos homens e mulheres que ao longo da história da presença da Igreja Católica na Amazônia, não hesitaram em assumir um novo modo de vida.
Falando da religiosa, algo que também impressionou dom Erwin, bispo do Xingú de 1981 a 2015, “foi a sua defesa da Amazônia, no sentido da floresta em pé. Ela não queria a Amazônia desmatada, e a sua luta era também nesse sentido. Por isso, ela luto pelos projetos de desenvolvimento sustentável”. As conseqüências dessa posição, segundo o bispo, logo apareceram, "naquele tempo, logicamente, essa luta pela Amazônia em pé, pela floresta em pé, contrariou os interesses de grandes fazendeiros e madeireiros".
Dom Erwin reconhece que "aí começou uma grande trama contra ela, e culminou com a morte dela”. Ele afirma que "nós não acreditávamos nunca na morte dela". Ele lembra que “poucos dias antes que ela morreu, ela ainda esteve aqui comigo, nos falamos sobre a situação, e eu disse, Dorothy, você está sendo ameaçada. Aí, ela respondeu, quem vai matar uma velha como eu?”. Essa é mais uma prova da confiança de alguém que não temia a morte, que entendia a vida com base em algo que é maior.
Segundo o bispo emérito de Xingu, “Dorothy foi ameaçada por muito tempo, tantas vezes falei com ela. Nós lutamos juntos, para nós ela deixou um grande legado”. Por isso, ele não hesita em afirmar que são “15 anos de morte, 15 anos de martírio, é um legado para todos nós, é um exemplo de vida doada”. Lembrando de suas palavras no momento de martírio da religiosa, "naquele tempo, eu falei que ela fez exatamente o que Cristo fez". Dom Erwin insiste que "ela doou a sua vida para que todos tenham vida, e isso impressiona. Ela é uma mártir pela causa do Evangelho, uma mártir pela causa que ela defendeu até a morte cruel de que ela foi vítima”.
O testemunho dos mártires da Amazônia é um exemplo de que novos caminhos são possíveis, que vale a pena dar a sua vida para que o Reino de Deus se torne uma realidade cada vez mais visível nesta terra, dominada por interesses semelhantes aos aqueles que tiveram aqueles que condenaram Jesus de Nazaré à morte da cruz. O Sínodo para a Amazônia plantou novas sementes, vindas de uma terra onde o cuidado produziu frutos abundantes, que devem ser mostrados a toda a Igreja, a todo o mundo.
A vida que não termina, a vida nascida na Páscoa, a vida que permanece de geração em geração, iluminou e continua alimentando uma Igreja e os povos que o Sínodo da Amazônia colocou no centro do debate eclesial e social. Aqueles que muitos consideravam inimigos do sistema e, portanto, foram condenados à morte, renasceram, ressuscitaram, continuam gerando vida para a casa comum e para os povos que cuidam dela, também para uma Igreja que quer estar ao lado do que e de quem muitos consideram descartáveis.
A irmã Dorothy, com seu rosto sereno, deve estar assistindo da Casa do Pai tudo o que está acontecendo em sua querida Amazônia. Ela, em 12 de fevereiro de 2005, estava indo a uma comunidade para falar sobre os direitos da Amazônia, quando foi abordada por dois homens armados. Quando lhe perguntaram se ela estava armada, ela respondeu que sua única arma era a Bíblia que ela carregava na bolsa, que ela começou a ler na passagem das bem-aventuranças. Sua morte, como a de tantos mártires, foi um exemplo de compromisso, de fé em Deus que nos promete que seremos felizes eternamente quando assumirmos seu projeto de vida.
A reportagem é de Luis Miguel Modino, publicado no Ihu