Quando buscamos no Google ou no Youtube as palavras "som de chuva”, as recomendações e resultados das pesquisas levam para produções audiovisuais que atribuem ao som da chuva um poder de relaxar, acalmar e até dormir.
No Youtube, o vídeo “Som de chuva para dormir”, com oito horas de duração, ultrapassa 71 milhões de visualizações. No entanto, para boa parte da população da região metropolitana do Recife, este som causou outro efeito. Isso porque, entre maio e julho deste ano, a região sofreu com os efeitos das fortes chuvas que deixaram 132 pessoas mortas e mais de 25 mil desabrigadas.
Em consequência das fortes chuvas, as cidades atingidas enfrentaram surtos de doenças causadas pelo contato com a água dos alagamentos e enchentes. Entre os meses de julho e outubro, 127 famílias participantes do relatório realizado pela Cáritas Brasileira, afirmaram que pelo menos uma pessoa no domicílio sofreu de alguma doença.
Aproximadamente 500 famílias, correspondentes a 1.100 indivíduos, sinalizaram que, durante os últimos 7 dias anteriores à construção do relatório tiveram ansiedade, episódios de choro e diminuição do sono. Além disso, 1.008 pessoas já se sentiram ansiosas, preocupadas ou nervosas nas semanas anteriores à construção do relatório.
No primeiro semestre deste ano, o Brasil testemunhou uma série de catástrofes naturais causadas pelas chuvas. Moradores de Minas Gerais e da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e, por último, Alagoas, foram vítimas dessas catástrofes, que causam diversos danos à vida humana, que vão desde prejuízos materiais até danos à saúde física e perda de entes queridos.
Nas últimas semanas do mês de novembro, novas chuvas ocorreram e vitimaram pessoas no Paraná, Espírito Santo e Rio de Janeiro, e o drama de quem sofre com os efeitos das chuvas voltou a aparecer, ou melhor, não pausou.
Os eventos extremos das mudanças climáticas, a exemplo das fortes chuvas que aconteceram recentemente, sempre existiram, mas a comunidade científica vem evidenciando e destacando que a maior frequência tem relação com a ação humana.
De tal forma, a gravidade dos acontecimentos sinaliza o alerta para as consequências relacionadas à ação antrópica e seus desdobramentos, como o aquecimento global e as mudanças climáticas. Assim, a ação humana, por meio dos projetos desenvolvimentistas - seja por meio da mineração, do agronegócio ou das hidrelétricas - tem se sobreposto à biodiversidade do planeta e à vida das comunidades, provocando uma mudança repentina na temperatura do planeta, contribuindo para a sua alteração, e fragilizando a vida dos seres vivos.
Efeitos pós-chuvas
Os impactos sociopolíticos, culturais e econômicos do pós-chuva são sentidos e, por vezes, compartilhados entre a população e pelas mídias em geral. Entre os fatores físicos e as perdas estruturais, milhares de pessoas sentem prejuízos também na saúde mental, situação que, por muitas das vezes, não é veiculada.
Sentir o coração acelerado, estresse, ansiedade, tristeza, choro frequente, medo, sentimento de impotência para superar ou receio em perder o controle, e até reações neurológicas como dormência ou formigamento em diferentes partes do corpo, quando se pensa sobre e prevê as chuvas, são sintomas comuns que têm sido relatados pela população afetada em Pernambuco.
Essas sensações podem ser sinônimo de que a saúde mental está desestabilizada Pior: alteram as relações sociais e afetivas das comunidades.
Miriam Florencio, moradora de Monte Verde em Jaboatão dos Guararapes-PE, um dos bairros mais afetados pelas chuvas, conta um pouco sobre o que tem enfrentado emocionalmente nos últimos meses:
“Eu sinto medo. Eu continuo assustada. Qualquer barulho leva tempo para que meu corpo entenda que não é perigo. Eu vivo em constante tensão, esperando que a qualquer momento a casa de cima venha a desabar e com ela o morro. Com as chuvas que se aproximam, o risco de uma nova tragédia é ainda maior. É angustiante viver assim. Não há certeza de nada. A falta de resposta adequada por parte daqueles que se dizem nossos representantes tem nos deixado doentes”, afirmou.
Para a psicóloga e doutora em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento, Maria da Conceição, situações críticas e desastres podem desencadear, nos mais vulneráveis, a extensão do sofrimento.
“Toda situação crítica, ou aquilo que a gente possa vir chamar de desastres, vai ter uma extensão no processo de sofrimento das pessoas. [...] O sofrimento, já existente, com as perdas de vida nesse desastre, vai se ampliar, na medida que essas vulnerabilidades já eram preexistentes. Na situação que vivemos aqui no Recife, essas pessoas viveram o episódio. Elas foram protagonistas de um cenário de dor e sofrimento que caiu sobre elas.
Já existiam todas as vulnerabilidades sociais somadas a essa condição de vulnerabilidade real, traumática”, pontuou.
A pesquisadora ressaltou ainda que, embora o sofrimento seja subjetivo e variável, as vulnerabilidades acentuam o adoecimento. “Em uma população que as vulnerabilidades são maiores é evidente que o processo de adoecimento pode-se fazer, não só na composição mental, mas outros tipos de adoecimentos. Essas pessoas terão respostas diferenciadas, mas é evidente que é preciso cuidar delas para que não venham a ter adoecimentos posteriores ou que gerem uma condição mais grave”, disse.
Confira na íntegra a entrevista com a psicóloga e doutora em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento, Maria da Conceição.
Saúde pública
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e profissionais das Unidades Básicas de Saúde (UBS) ofertam assistência à população e ajudam os usuários a se relacionarem de forma mais saudável com as suas questões. Além disso, algumas instituições de ensino superior oferecem atendimento psicológico de forma gratuita ou com preços reduzidos.
Dessa forma, os usuários que desejam acessar os serviços de Saúde Mental dos municípios devem ir até as UBS para realizar o atendimento com o profissional de saúde que, de acordo com a necessidade de cada caso, irá encaminhar o paciente para o tratamento.
Já pessoas que necessitam de uma demanda urgente, podem acessar os atendimentos por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) no qual receberão o acolhimento da equipe e, de acordo com a necessidade apresentada, o atendimento na unidade.
Há também o Centro de Valorização da Vida (CVV), que realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone (Disque 188), email, chat 24 horas todos os dias e em postos de atendimento (https://www.cvv.org.br/postos-de-atendimento/).
Quando as políticas públicas são insuficientes
Por meio do cadastramento das populações que estão sendo contempladas pelo projeto Resposta Emergencial Pernambuco, agentes Cáritas têm coletado que boa parte das famílias atingidas pelas fortes chuvas sinalizam demandas psicossociais e cuidados com a saúde mental, que sem diagnóstico adequado, podem parecer outras situações.
Segundo Rosana Mota, assessora local do projeto, durante o cadastramento das famílias é comum aparecerem relatos que sinalizam para a fragilidade da saúde mental e que são confundidos com outros adoecimentos. “Nas entrevistas para a realização dos cadastros, frequentemente ocorrem relatos que denotam fragilidade no campo da saúde mental, que podem ser confundidos com sintomas de doenças do dia a dia, como desânimo, irritabilidade, apatia, entre outros. Entretanto, o desconhecimento acerca das possibilidades terapêuticas, aliadas às questões culturais de um país que não oferta serviços, bem como todas as vulnerabilidades vividas, impõem sofrimento psíquico para além das perdas e ausência de direitos sociais", afirmou.
Em forma sequencial, os efeitos das fortes chuvas desencadeiam mais intensidade nos problemas existentes. De um lado, temos as populações que já utilizam o serviço público de saúde, o SUS, para o tratamento de doenças físicas, sendo esse a única alternativa para tratar a saúde. Do outro, os problemas das populações coincidem com as graves interrupções nos serviços, deixando enormes lacunas no atendimento daqueles que mais precisam.
De tal forma, as pessoas desamparadas e mais vulneráveis que adoecem buscam o SUS. Em alguns casos, o sistema não prevê profissionais capacitados para cuidar da saúde mental, que é agravada com os desastres.
Mas, o que diz o poder público?
Em nota enviada para a comunicação da Cáritas Brasileira, a Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes sinalizou que vem prestando apoio psicológico às vítimas das últimas enchentes, desde o período emergencial. Na ocasião, o município sinaliza que chegou a firmar acordo de cooperação com a organização internacional Médicos Sem Fronteiras, que durante 60 dias colaborou com os cuidados à saúde da população.
Segundo a Prefeitura, foram realizados, entre maio e julho deste ano, 6.917 procedimentos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) deste município, ultrapassando os 5.347 ocorridos no mesmo período do ano passado.
O município apontou ainda que destinou a presença dos profissionais de saúde mental em abrigos (inclusive psiquiatras) e contato direto com familiares das vítimas.Também implantou e manteve plantões psicológicos presenciais semanais nas comunidades mais atingidas. Considerou a extensão do atendimento psicológico às pessoas que perderam entes queridos e o acolhimento em saúde mental aos profissionais da prefeitura.
Já a Prefeitura do Recife apresentou que estruturou uma linha de cuidado integral desde a atenção primária à saúde, oferecendo, aos moradores atingidos, escuta qualificada feita por psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais.
Nas áreas mais atingidas pelas chuvas, o município afirma que realizou, desde junho, atividades para apoiar os profissionais atuantes no local para melhor condução, acolhimento, acompanhamento e monitoramento dos casos, enviando equipes aos locais.
A prefeitura reforçou ainda que foram realizados, entre maio e julho de 2021, 42.792 atendimentos nos Caps. Neste ano, nesse mesmo intervalo temporal, houve um aumento de 7,5% a mais do que ano passado, totalizando 46.273 atendimentos nos Caps.
Entramos em contato com a Prefeitura de Camaragibe para solicitar as mesmas informações, mas até o fechamento deste texto não tivemos respostas.
O espaço continuará aberto para prestar mais esclarecimentos.
Resposta Emergencial Pernambuco
O projeto Resposta Emergencial de Pernambuco: Recife, Camaragibe e Jaboatão dos Guararapes é uma ação desenvolvida pela Cáritas Brasileira, com o financiamento da Cáritas Bélgica, Cáritas Suíça e Direção-Geral da Proteção Civil e das Operações de Ajuda Humanitária da União Europeia (DG ECHO).
A iniciativa surge como desdobramento das ações da campanha emergencial #SOS RECIFE E REGIÃO METROPOLITANA: Solidariedade que transforma, realizada pelas Arquidiocese de Olinda e Recife,Cáritas Arquidiocesana e Cáritas Brasileira Regional Nordeste 2, cuja finalidade foi apoiar imediatamente as populações afetadas pelas fortes chuvas que ocorreram no primeiro semestre deste ano na região.