Diante do agravamento das emergências climáticas no Brasil, comunidades rurais do interior do Rio Grande do Sul estão se mobilizando para se preparar melhor e responder de forma mais eficaz às situações de crise. No município de Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari, uma das regiões mais afetadas pelas inundações históricas de 2024, teve início uma série de oficinas comunitárias de prevenção e proteção. A proposta é construir, de forma participativa, planos de ação em três níveis, familiar, comunitário e municipal, com base nas vivências e nas necessidades concretas das populações atingidas.
Sete comunidades rurais estão envolvidas neste processo: Bom Fim, Desterro, Linha Lotes, Maravalha, Santarém, São Miguel e Zona da Lagoa, todas localizadas em áreas de difícil acesso, frequentemente isoladas por alagamentos. As oficinas são parte do Projeto Cáritas nas Emergências, coordenado pela Cáritas Brasileira. A ação conta com a parceria da EMATER/RS-Ascar, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Defesa Civil de Cruzeiro do Sul, Escola de Jovens Rurais, Paróquia São Gabriel Arcanjo, Secretarias Municipais de Saúde e Assistência Social e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul.
“Essas oficinas são importantes para a formação técnica das comunidades e das famílias, mas também para a troca de experiências e saberes sobre emergências, gestão de risco e prevenção”, explica Márcio Camargo, assessor nacional da Cáritas Brasileira. Para ele, o processo também aprofunda vínculos de confiança e organização social: “Esses encontros fortalecem os processos organizativos comunitários e a mobilização social, além de abrir espaço para que as pessoas expressem seus medos, vontades e sonhos. É fundamental garantir que todos e todas tenham voz nesse processo. Quem vive nas comunidades conhece a própria realidade e sabe apontar caminhos. O enfrentamento às emergências climáticas começa de dentro para fora, a partir da escuta, da organização local e da construção coletiva de soluções”.
Oficinas como espaços de escuta, análise e reconstrução
As duas primeiras oficinas ocorreram nos dias 6 e 13 de maio de 2025, reunindo no total 95 participantes. O primeiro encontro foi realizado na Escola Estadual Itaipava Ramos, na comunidade São Miguel, e o segundo, no Ginásio da Comunidade Maravalha — ambos situados na zona rural de Cruzeiro do Sul. A metodologia adotada estimulou o diálogo entre moradores, lideranças comunitárias, agentes públicos e representantes de organizações da sociedade civil.
Participantes em roda de conversa na Escola Estadual Itaipava Ramos, comunidade São Miguel, durante oficina comunitária realizada em Cruzeiro do Sul (RS).
A articuladora do projeto, Marilene Maia, destaca que as oficinas têm mobilizado não apenas a memória das perdas, mas também o desejo coletivo de transformação. “Percebe-se o envolvimento crescente das famílias na mobilização e no debate sobre as emergências vividas e sobre os desafios de entender o que causou tudo isso. Ao mesmo tempo, há uma busca por caminhos para superar esses impactos por meio da prevenção e da proteção de cada pessoa e das comunidades”, afirma. Ela acrescenta que a participação das pessoas está ligada também a um anseio por reconstrução mais ampla: “Casas seguem destruídas, estradas com dificuldades de acesso, prédios públicos comprometidos, muitas famílias sem trabalho ou renda. Há incertezas e medos em relação ao movimento dos rios, da lagoa, dos riachos nos próximos eventos climáticos. Mas há também um desejo claro de vida. As pessoas entendem que, para isso, é fundamental participar dos planejamentos municipais de prevenção, proteção e recuperação.”
Comunidade reunida no Ginásio da Comunidade Maravalha, em Cruzeiro do Sul (RS), durante oficina realizada em 13 de maio.
Diagnósticos comunitários revelam potências e fragilidades
Durante as oficinas, foi aplicada a ferramenta FOFA (Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças). A partir das experiências das comunidades, foram identificados os recursos disponíveis, as vulnerabilidades locais e os potenciais de organização comunitária para mitigar os efeitos de futuras emergências.
Na comunidade de São Miguel, que fica frequentemente ilhada durante as inundações, os moradores destacaram como forças a união entre vizinhos, a fé, a resistência das famílias e a presença de voluntários de cidades próximas, como Venâncio Aires e Bom Retiro do Sul. Kits improvisados de sobrevivência, casas com estrutura resistente e o desejo de receber treinamento em salvamento também foram apontados como elementos positivos.
Em Maravalha, que serviu como abrigo emergencial em 2024, os participantes valorizaram o acolhimento solidário, a amizade, o apoio comunitário e o protagonismo de moradores que atuaram nos salvamentos. A infraestrutura do ginásio local e a busca por cursos, barcos e equipamentos de segurança foram citados como oportunidades.
Entre as fraquezas, destacam-se a comunicação limitada, a ausência de rotas de fuga, a falta de equipamentos de resgate, a insegurança e a dificuldade de acesso a informações claras durante as inundações. Muitas famílias relataram, ainda, a ausência de representantes públicos nos momentos críticos e a dificuldade em acessar os alertas digitais.
As ameaças mais recorrentes incluem o risco de novas inundações, o isolamento geográfico, a desinformação, o abandono institucional, o recolhimento irregular de lixo, o medo diante do comportamento dos rios e a insegurança nos abrigos.
Próximos passos e articulação institucional
As próximas oficinas estão previstas para o mês de junho, nos mesmos locais, com aprofundamento na elaboração dos planos familiar, comunitário e municipal de prevenção e proteção. A expectativa é consolidar a formação de grupos comunitários capacitados para atuar em situações de emergência, com treinamentos práticos e articulação com os sistemas públicos de defesa civil.
Além das oficinas, reuniões periódicas entre as organizações envolvidas têm sido realizadas no escritório da Defesa Civil de Cruzeiro do Sul, para avaliação do processo e planejamento das próximas etapas. A construção coletiva dos planos busca não apenas reagir aos desastres, mas fortalecer o território e garantir participação cidadã na formulação de políticas públicas.
A experiência de Cruzeiro do Sul revela a importância de iniciativas que não apenas respondem às emergências, mas antecipam os riscos e constroem soluções a partir do território. Num cenário em que a crise ambiental se intensifica, articular conhecimento local, solidariedade e políticas públicas torna-se essencial para proteger vidas e fortalecer comunidades.
Sobre o Projeto:
Cáritas nas Emergências: Comunidades Mobilizadas no Enfrentamento às Mudanças Climáticas é uma ação da rede Cáritas Brasileira, que conta com o apoio da Arquidiocese de Boston, Cáritas Alemanha, Cáritas Chile, Cáritas Espanha, Cáritas Internacional, Cáritas Japão, Catholic Relief Services (CRS), Excellerate Energy, além de diversas entidades locais.
A iniciativa faz parte de um chamado internacional, lançado em 2024, para responder às necessidades urgentes das comunidades afetadas por inundações no sul do Brasil.