Papa Francisco almoça com os pobres na ocasião da 3ª Jornada Mundial dos Pobres - Foto: Vatican News
Por Francisco
de Aquino Júnior[1]
No final
do Jubileu Extraordinário da Misericórdia (2015-2016), o papa
Francisco instituiu o Dia Mundial dos Pobres, a ser celebrado no
penúltimo domingo do tempo litúrgico. Seu objetivo é recuperar e reavivar na
Igreja “um elemento requintadamente evangélico, isto é, a predileção de Jesus
pelos pobres” para que “as comunidades cristãs se tornem, em todo o mundo, cada
vez mais e melhor sinal concreto da caridade de Cristo pelos últimos e os mais
carentes”[2].
Se isso é um aspecto constitutivo e essencial da revelação e da fé cristãs,
como se pode comprovar na Sagrada Escritura e em toda a Tradição da Igreja,
torna-se ainda mais relevante, urgente e prioritário em nosso tempo, dados o
crescimento da desigualdade social e a situação dramática e desesperadora em
que vivem tantos filhos e filhas de Deus em nosso mundo.
Para ajudar as comunidades, pastorais, movimentos e organismos da Igreja do
Brasil a celebrar o III Dia Mundial dos Pobres (17/11/2019), apresentaremos
alguns dados que ajudam a compreender as dimensões e proporções da pobreza no
Brasil e no mundo, destacaremos com Francisco o “vínculo indissolúvel entre
nossa fé e os pobres” (EG 48) e indicaremos alguns aspectos do
compromisso da Igreja com os pobres.
I –
Dimensões e proporções da pobreza
A pobreza é a característica mais determinante, gritante e escandalosa de nossa
sociedade. Antes de tudo pela dimensão e proporção que
adquiriu: São milhões de pessoas que vivem em condições sub-humanas, carecendo
das condições materiais básicas de sobrevivência. E, mais ainda, por ser
algo produzido e lucrativo: não é um fenômeno natural, fruto do
acaso ou do destino, mas fruto de opções políticas e econômicas, consequência
natural da riqueza ou acumulação de bens.
Se isso caracteriza a maioria das sociedades que conhecemos, a ponto de ser
naturalizado por muita gente (“sempre foi assim”), adquiriu em nossa sociedade
dimensões e proporções incomparáveis e escandalosas:
Situação
mundial: enquanto a América do Norte e a Europa têm apenas 18,6% da
população e concentram 67,1% de toda riqueza global, a África e a América do
Sul têm 20,3% da população e detém apenas 11,1% da riqueza[3];
apenas 147 companhias controlam 40% da riqueza total do mundo[4];
enquanto 8,6% da população detém 85,3 de toda a riqueza no mundo, 69,8% da
população pobre detém apenas 2,9% da riqueza[5];
0,7% da população mundial detém 46% da riqueza total do mundo, enquanto 73,2%
da população detém apenas 2,4% da riqueza; 1% da população tem mais riqueza do
que os 99% restante; 8 indivíduos detém a mesma riqueza que a metade mais pobre
do mundo; entre 1998 e 2011, a renda dos 10% mais pobres aumenta cerca de 65
dólares, enquanto a renda de 1% mais rico aumentou cerca de 11.800 dólares (182
vezes mais)[6].
Situação
brasileira: De 2016 para 2017 o número de pobres que vivem com até 406
reais por mês passou de 52,8 para 54,8 milhões (2 milhões a mais!) e o número
de pessoas que vivem na extrema pobreza com até 140 reais por mês passou de
13,5 para 15,2 milhões de pessoas (quase 2 milhões a mais!); percentual
de pobreza por regiões: nordeste (44,8%), sudeste (17,4%), sul (12,8%); quase
metade da população das regiões norte e nordeste tem rendimento mensal de até
meio salário mínimo; entre 2014 e 2017 o número de pessoas sem ocupação passou
de 6,9% para 12,5% da população (6,2 milhões de pessoas a mais!); 40,88% da
população vive de trabalho informal; os brancos ganham, em média, 72,5% mais
que pretos e pardos e os homens 29,7% mais que as mulheres[7];
estudos parciais de 2015 estimavam mais de 100 mil pessoas vivendo em situação
de rua no Brasil[8]...
Convém advertir com Francisco que “os pobres não são número” e não podem ser
reduzidos a dados estatísticos[9].
Por trás desses dados, como tem recordado as conferências dos bispos da América
Latina[10],
estão pessoas com rostos concretos, vidas destroçadas: camponeses, indígenas,
negros, mulheres, população em situação de rua, desempregados e subempregados,
moradores de favelas e periferias, vítimas do tráfico, mães desesperadas,
jovens pobres e negros, migrantes, população LGBT... São números escritos com
lágrimas e sangue. Dados que ecoam como grito desesperado e silenciado de
milhões de seres humanos que nos provocam, convocam e obrigam...
II – A
Igreja e os pobres
Se ninguém pode/deve ficar indiferente à situação de pobreza e miséria de que é
vítima grande parte da população do Brasil e do mundo (senso de humanidade),
muito menos podem ficar indiferentes os crentes em geral e os cristãos em
particular (fé religiosa). Nem por humanidade nem por fé religiosa podemos
aceitar o decreto de morte a tantos filhos/as de Deus e, consequentemente,
“lavar as mãos” e nos desresponsabilizarmos de sua vida e de seu destino. É
questão de “vida ou morte” para vítimas. E é questão de salvação ou de perdição
para todos.
O papa Francisco, em fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo, tem insistido,
com toda a Tradição cristã, no “vínculo indissolúvel entre nossa fé e os
pobres” (EG 48). Ficar “surdo” ao clamor dos pobres, “coloca-nos
contra a vontade do Pai e de seu Projeto”. Não se deve esquecer jamais que “a
falta de solidariedade nas suas necessidades, influi diretamente sobre nossa
relação com Deus” (EG 187).
Na mensagem que escreveu para o III Dia Mundial dos Pobres, Francisco recorda
que a “descrição da ação de Deus em favor dos pobres” constitui um “refrão
permanente da Sagrada Escritura” e, referindo-se a Mt 25, 40, afirma que
“esquivar-se dessa identificação [com o pobre] equivale a ludibriar o Evangelho
e diluir a revelação”. No centro do Evangelho do Reino está a Bem-aventurança
aos pobres: “Bem-aventurados vós, os pobres” (Lc 6, 20). Jesus “inaugurou,
mas confiou-nos, a nós seus discípulos, a tarefa de lhe dar seguimento, com a
responsabilidade de dar esperança aos pobres. Sobretudo num período como o
nosso, é preciso reanimar a esperança e restabelecer a confiança. É um programa
que a comunidade cristã não pode subestimar. Disso depende a credibilidade do
nosso anúncio e do testemunho dos cristãos”[11].
Aqui está o “critério-chave de autenticidade eclesial” (EG 195) com
base no qual “a Igreja mede a sua fidelidade de Esposa de Cristo”[12].
Para a fé cristã, a pobreza e a marginalização não são apenas uma questão
sócio-política e ética (justiça social), mas também e mais radicalmente uma
questão espiritual que diz respeito à nossa relação com Deus (salvação). “A
situação em que vivem os pobres é critério para medir a bondade, a justiça, a
moralidade, enfim, a efetivação da ordem democrática” [13]. E é critério escatológico para medir a
adesão ou rejeição de um povo ou de uma sociedade ao Deus que se revela na
história de Israel e na vida de Jesus Cristo (Cf. Lc 10, 25-7; Mt 25, 1-40). De
modo que os pobres e marginalizados são tanto os “juízes da vida democrática de
uma nação”[14],
quanto o “protocolo com base no qual seremos julgados”[15] ou
o “passaporte para o paraíso”[16].
III –
Compromisso com os pobres
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, Francisco afirma que
“uma fé autêntica – que nunca é cômoda nem individualista – comporta sempre um
profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco
melhor depois de nossa passagem por ela” (EG 183). E em sua
mensagem para o III Dia mundial dos Pobres insiste em não nos afastarmos do
“Corpo do Senhor que sofre neles”, mas “tocar a sua carne para nos comprometermos
em primeira pessoa num serviço que é autêntica evangelização”. E recorda que “a
promoção, mesmo social, dos pobres não é um compromisso extrínseco ao anúncio
do Evangelho; pelo contrário, manifesta o realismo da fé cristã e a sua
vitalidade histórica. O amor que dá vida à fé em Jesus não permite que seus
discípulos se fechem num individualismo asfixiador, oculto nas pregas duma
intimidade espiritual, sem qualquer influxo na vida social”[17].
Mas não há receita para o compromisso com os pobres. Nem existe uma única forma
de compromisso com os pobres. Implica proximidade e escuta, acompanhamento e
partilha espiritual, assistência em suas necessidades imediatas, luta por seus
direitos e pela transformação da sociedade... E as referências em nossa
tradição eclesial são muitas e diversas: de Francisco de Assis, Vicente de
Paula, Madre Tereza de Calcutá, Irmã Duce a Oscar Romero, Helder Câmara,
Ezequiel Ramin, Pedro Casaldáliga etc.; dos serviços de visita e assistência
imediata aos necessitados às pastorais e aos organismos sociais que acompanham
os pobres em suas lutas e organizações populares; da solidariedade cotidiana à
luta pela transformação da sociedade.
Didaticamente, podemos indicar com Francisco quatro aspectos fundamentais do
compromisso com os pobres[18]:
1) proximidade física e esforço de socorrê-los em suas necessidades; 2) cuidado
espiritual e assistência religiosa; 3) vivência e fortalecimento da cultura da
solidariedade e 4) enfrentamento das causas estruturais da pobreza e da
injustiça no mundo através das lutas e organizações populares.
Importa ter presente que o compromisso com os pobres “envolve tanto a
cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e
promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos
mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito
concretas que encontramos” (EG 188); passa tanto pelos gestos
pessoais e comunitários de solidariedade, quanto pelas lutas por direitos e
pela transformação da sociedade.
E
importa recordar que o compromisso com os pobres é tarefa de todos na
Igreja: “Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres porque suas
opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências”; “ninguém
pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça
social” (EG, 201). “Todos os cristãos, incluindo os pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção de um mundo melhor”, unindo-se, nesta
tarefa, às “demais Igrejas e comunidades eclesiais” (EG, 183). “Cada
cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da
libertação e da promoção dos pobres” (EG, 187). Uma comunidade que não
se compromete criativamente com a causa dos pobres, “facilmente acabará
submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas,
reuniões infecundas ou discursos vazios” (EG, 207).
[1] Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de
teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP).
[2] PAPA FRANCISCO. Mensagem para o I Dia Mundial dos Pobres
(19/11/2017). Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/papa-francesco_20170613_messaggio-i-giornatamondiale-poveri-2017.html
[3] Cf. POCHMANN, M. Desigualdade econômica no Brasil. São
Paulo: Ideias & Letras, 2015, p. 50s.
[4] Cf. Ibidem, p. 57.
[5] Cf. Ibidem, p. 62s.
[6] Cf. DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São
Paulo: Outras Palavras, 2017, p. 27ss.
[7] Cf. AGENCIA DE NOTICIAS IBGE. Síntese de Indicadores
Sociais. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23298-sintese-de-indicadores-sociais-indicadores-apontam-aumento-da-pobreza-entre-2016-e-2017
[8] Cf. IPEA. Estimativa da População em Situação de Rua no
Brasil. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23298-sintese-de-indicadores-sociais-indicadores-apontam-aumento-da-pobreza-entre-2016-e-2017
[9] PAPA FRANCISCO. Mensagem para o III Dia Mundial dos Pobres.
Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/papa-francesco_20190613_messaggio-iii-giornatamondiale-poveri-2019.html
[10] Cf. Puebla (31-39), Santo Domingo (178), Aparecida (402).
[11] PAPA FRANCISCO. Mensagem para o III Dia Mundial dos Pobres. Op.
cit.
[12] PAPA JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Novo Millennio
Ineunte. São Paulo: Paulinas, 2002, n 49.
[13] CNBB. Exigências éticas da ordem democrática. São
Paulo: Paulinas, 1989, n. 72.
[14] Ibidem.
[15] PAPA FRANCISCO. Via-sacra com os jovens na XXXI Jornada
Mundial da Juventude na Polônia (29/07/2016). Disponível em:
[16] PAPA FRANCISCO. Homilia no I Dia Mundial dos Pobres
(19/11/2017). Disponível em:
[17] PAPA FRANCISCO. Mensagem para o III Dia Mundial dos Pobres. Op.
cit.
[18] Cf. AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Pastoral Social:
Dimensão socioestrutural da caridade cristã. Brasília: CNBB, 2016, p. 51-55.