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Realmar: o desafio econômico e social do Papa Francisco ganha mais força com a COVID-19

Geral

No artigo, Eduardo Brasileiro traz uma reflexão sobre os desafios econômicos e sociais, ainda mais agudos no Brasil e no mundo

Publicação: 30/04/2020




Eduardo Brasileiro, sociólogo (FESPSP – Escola de Sociologia e Política de São Paulo), educador social na periferia de São Paulo onde também participa da Igreja Povo de Deus em Movimento (IPDM). Membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco (ABEFC).


Neste ano o Papa Francisco nos convida a pensar, sentir e agir diante de uma situação incômoda. A sociedade global chega à um colapso social, econômico e ambiental, engolida pelos dono do mundo, o mercado financeiro. 

Essa lógica construída há décadas, até meses atrás esteve ancorada como triunfo do capitalismo. Multinacionais poderosíssimas, empresas inteligentes, otimismo tecnológico, homens fortes controlando um gigantesco aparato tecnológico-industrial-militar. Porém, um vírus corrói todo esse império exigindo que as populações saiam das ruas e parem a produção, a mobilidade e o consumo como estavam acostumados. 

A pandemia de COVID-19 não é um fato natural. Nasce da pecuária industrial e da devastação da Saúde pública desde a crise de 2008, que revela o capitalismo construído com base numa economia da morte, da exclusão e da mentira. A população global vive seu mais difícil momento, de um lado aqueles que tiveram de recuar, do outro aqueles que nunca pertenceram à essa “sociedade” e precisam desobedecer saindo às ruas para colocar o prato de comida na mesa. Nesse momento há um misto de sentimentos que nos atravessam. 

O Papa Francisco atento aos clamores da terra e dos pobres convocou um encontro global para discutir novas economias, chamado “Economia de Francisco” remetendo a Francisco de Assis e que no Brasil temos acrescentado também a irmã Clara de Assis. Ele, não crê numa só dimensão para saída à crise. Crê-se no que reconhecemos em recente publicação para a revista espanhola Vida Nueva num “plano para ressuscitar diante da emergência do COVID-19”. Essa ressurreição ocorre quando se desnuda o “mínimo vital”, capacidade de reconhecer a economia como cuidado e não como rolo compressor dos poderosos. A economia capitalista neoliberal erigida, tem raça, cor e gênero. É branca, masculina, binária e possui um acréscimo é patriarcal, passada de heranças há séculos. Os poderosos de hoje são os poderosos de ontem, ou pelo menos seus familiares. Portanto, um novo período se fará com novos sujeitos. Os que estão nas periferias do planeta: populações das periferias, imigrantes, povos das florestas, pessoas negras, mulheres, camponeses, e tantas que vivem sob o predomínio da marginalização social. Essas pessoas possuem a dupla contradição - a da opressão sofrida, e também a marca do poder da mudança.  É tempo de realmar a economia da morte.

Por que realmar a economia?

A economia no capitalismo neoliberal é tomada pela centralidade do dinheiro no poder de compra, de circulação e de ascensão social e de construção da subjetividade. Por isso, duas sociedades num mesmo mundo: os que detém o monopólios dos mercados, o 1%, e nós, os que vivem sobre a precariedade da péssima distribuição de riquezas produzidas, os 99%. Em cenários de crise como a do COVID-19 o capitalismo neoliberal responde com precarização do trabalho. Vejam a aprovação da Medida Provisória 936 – permitindo que se reduza os salários, agora aprovados pelo STF sem a negociação sindical, e mais concentração de capital para os grandes empresários que demitem centenas de milhares sem mexer nas reservas que possuem. 

O cenário nacional diante da pandemia é desolador. Como afirmou a jornalista Eliane Brum, em seu artigo no El Pais: Aos que sempre estiveram na zona de privilégio porque é tão importante “voltar a normalidade”?

Porém, as crises que se avolumam no Brasil, entre representantes e representados, guerras atrozes como forma de lidar com os nossos conflitos, violência crescente contra as mulheres que ousaram ser elas mesmas, galáxia de comunicação dominada pela mentira, agora chamada de pós-verdade, a sociedade do desempenho e do descarte que destrói nosso lar, a Terra. 

Nos últimos anos, as reformas de cunho neoliberais e as decisões das equipes econômicas governamentais aumentaram a dependência nacional das importações de manufaturas, dado o grau de desindustrialização que envolveu o Brasil: de uma participação de 30% na composição do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro na década de 1980, a indústria despencou para menos de 10% nos dias de hoje.  O Brasil retomou uma estrutura econômica do passado, baseada no rentismo e no agronegócio. 

A saída, tanto para as nações do mundo, em especial para o Brasil, que é um dos países mais desiguais do mundo, é a construção de um novo pacto interno onde o Estado passa a ter predominância na reorganização nacional, adotando políticas intervencionistas que gerem segurança social, com fortes políticas redistributivas, alterando o perfil dos orçamentos públicos e da política tributária em favor dos mais pobres e dos que perderam renda e emprego em virtude da fortíssima retração econômica.

Os 38 milhões de brasileiros sem carteira assinada e, portanto, desalentados a partir de agora, serão os mais duramente atingidos por esta crise gigantesca nos próximos meses. 

A crise sanitária aberta pelo impacto do novo coronavírus questiona todo receituário neoliberal ou ultraliberal que atinge o Brasil desde 2015 e que se acentuou com reformas votadas pelo Congresso Nacional que buscaram reduzir o custo do trabalho, congelou gastos públicos e reduziu a capacidade de intervenção estatal na economia. 

O Papa Francisco aponta, no entanto, o risco de corrermos aos paradigmas “tecnocêntricos”. Todo o discurso político foi marcado pela supremacia da economia sobre a política, e a supremacia do mercado financeiro sobre a democracia. Todos os problemas globais podem ser resolvidos com a impressão de economias a serviço dos povos. Economia solidária, voltada para a partilha, desenvolvimento sustentável local, empoderamento das mulheres, talhando na vida das pessoas o reencontro com algo que foi tirado pela racionalidade neoliberal que é o comunitário, a partilha e o comum. Economia Ecológica (ou ecologia integral) voltada para o fim dos combustíveis fósseis e a confecção de comunidades autogestionárias. 

Economias para a cultura do encontro que está presente em desarmar o obscurantismo que volta a ser presente em todo o mundo com ideias autoritárias, a globalização da indiferença numa cultura do bem estar anestesiante e a idolatria do dinheiro, para propor o acolher, escutar, dialogar e repensar a arquitetura econômica construída pelos donos do poder e do dinheiro.

Uma economia, portanto, para o bem comum. Iniciando pela dependência que se tem, pessoas e Estado, sobre os bancos. É possível, existir em cada município bancos locais, moedas, onde o princípio está na partilha dos lucros e na produção. Porém, a realidade brasileira está muito distante disso: desde 1995, os bilionários do país não pagam impostos sobre suas fortunas e nem dos fluxos financeiros. Enquanto milhares de pessoas pobres em todo o país pagam mais impostos que os ricos. Taxar as fortunas é a correspondência da responsabilidade com a Casa Comum, na partilha e melhor distribuição, devendo ser transferida para políticas de socorro à milhares que no Brasil vivem com renda de R$ 413,00 por mês, segundo a PNAD contínua em 2019.

A palavra de ordem neoliberal é a disciplina na austeridade fiscal, priorizando cenários pós crise de salvar os bancos e grandes corporações, emitindo moedas para suprimir milhares de impérios. Para isso o Papa Francisco reúne centenas de milhares de economistas, ativistas de movimentos populares e empreendedores para repensar o papel do dinheiro produtor de tantas desigualdades. O dinheiro não tem como finalidade como vem ocorrendo de se acumular, mas sim de circular. 

O Estado como gestor do comum e não das finanças globais é caminho para novas economias. Assim, pode se visualizar espaços que incluam reocupação dos centros das cidades com habitação digna, nas periferias infraestrutura equivalentes aos das zonas centrais, mobilidade urbana capaz de ninguém passar mais de 30 minutos se deslocando para trabalhar. Uma política agroecológica com direito ao prato de comida na mesa sem veneno. Segurança pública comunitária, local, onde os cidadãos administram. Educação e Saúde restaurados em seu projeto público e inovador. Os pontos de cultura espalhados por todo canto como motores da inovação subjetiva e política. 

A vida sendo mais importante que o PIB, pois dela se mensurará a Felicidade Interna Bruta adquirida por várias dimensões humanas hoje ignoradas. Esse caminho é alimento para construir a nova sociedade como prática da fé, porque sabemos que Ele virá e dirá ‘Alegrai-vos! Estou convosco’ (Mt 28, 9).


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