Imagem: Encontro Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo: Reforço de Parcerias Contributivas, 2020, Promovido pelo Ministério Público do Trabalho
Em virtude do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, lembrado nesta terça-feira (28), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEPEETH), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), divulgam Nota Pública.
Em 2019, 1.054 trabalhadores e trabalhadoras foram encontrados em situação análoga à de escravo. Destes, 934 foram flagrados em estabelecimentos rurais e 120 urbanos, dos quais 46 estrangeiros. Os dados são do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério da Economia.
Leia à integra da Nota
¿Estos, no son hombres?¿Esto no
entendéis, esto no sentís?
Frei Antônio Montesino, o.p, dez.
1511, La Española (Santo Domingo)
Neste momento da vida nacional em
que presenciamos ataques e reduções de direitos associados ao desmonte da
fiscalização, fica ainda mais fundamental fazer memória, no dia 28 de janeiro,
de um evento em que se tentou intimidar a ação da fiscalização do trabalho: o
assassinato de quatro servidores públicos, três auditores fiscais do trabalho e
seu motorista, 16 anos atrás, quando fiscalizavam fazendas da zona rural de
Unaí (MG). Tornou-se um apelo para toda a sociedade voltar seus olhos para a
trágica realidade do trabalho escravo: um escândalo denunciado desde os
primórdios da colonização das Américas e que teima em vigorar em pleno século
21, no Brasil e no mundo.
Entre 1995 e 2019, fiscais do
trabalho encontraram 54.491 pessoas em situação de trabalho escravo no Brasil,
segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Governo Federal (SIT).
52.169 delas chegaram a ser resgatadas, entre elas 756 trabalhadores imigrantes
de outros países, 177 com menos de 16 anos e 323 jovens de 16 a 18 anos. Em
maioria, afrodescendentes.
Em 2019, 1.054 trabalhadores
foram encontrados nessa situação, um número que se mantém na média dos últimos cinco
anos, porém abaixo da metade do número registrado entre 2010 e 2014.
Manifestação mais conhecida do
tráfico humano, o trabalho escravo nega a dignidade àqueles largados em
situação de pobreza por um sistema econômico movido a lucro, implacável, injusto.
Para enfrentar a crise ou vencer concorrentes, custe o que custar, empregadores
buscam aumentar seus lucros ampliando a exploração da força de trabalho.
Unem-se para aprovar políticas públicas que exacerbam o liberalismo econômico e
aprofundam as desigualdades, ao reduzir direitos e ao desmontar os mecanismos
de controle social e de fiscalização pública, a exemplo do caminho seguido pelo
governo Bolsonaro.
A eliminação do Ministério do
Trabalho e a sua incorporação ao Ministério da Economia escancaram a política
que se rege por outros interesses que não os de melhorar as condições de
trabalho e a vida de trabalhadores e trabalhadoras. Diluído nesta
megaestrutura, o antigo MTE virou mera Secretaria Especial, sem peso nem
orçamento adequado. Assim se cumpre o sonho de muitas empresas de neutralizar
qualquer mecanismo de fiscalização que venha inibir seus mais absurdos
propósitos de exploração.
Parte da atual administração, o
setor ruralista sempre atacou a fiscalização do trabalho e seus avançados instrumentos
que fizeram do Brasil uma referência na comunidade internacional: um conceito
moderno de trabalho escravo, um sistema ágil de fiscalização independente de
pressões políticas, um cadastro nacional que dá visibilidade ao problema (lista
suja), uma política nacional de erradicação do trabalho escravo com agentes,
parceiros e mecanismos de monitoramento. No poder, buscam sufocar esses
instrumentos, a começar pela fiscalização do trabalho escravo, minguando recursos
humanos e orçamentos.
Muito está sendo feito para
retirar independência, autonomia e protagonismo dos auditores fiscais do
Trabalho, por meio de portarias, medidas provisórias ou projetos de lei em
tramitação no Congresso Nacional. A propalada Reforma Trabalhista, ao contrário
de sua propaganda, retirou direitos da classe trabalhadora, jogando cada vez
mais pessoas em um mercado que se beneficia da flexibilização da lei.
Trabalhadores convertem-se em “autônomos”, “pejotizados”, “uberizados”,
terceirizados à força, precarizados e enfraquecidos na sua capacidade de
organização e mobilização.
Essa situação tende a fazer com
que cresça a exploração e, por conseguinte, os casos de trabalho escravo,
exacerbando ao mesmo tempo sua invisibilidade. Nesses casos, a habitual
ausência de registro em carteira de trabalho é acompanhada da imposição de
condições degradantes, insalubres, que colocam em risco a saúde e a vida da
pessoa: alimentação precária, ausência de água potável, negação de alojamento
decente, falta de equipamentos de proteção, etc. Ameaças, isolamento
geográfico, endividamento e violência física ainda são utilizados para manter o
trabalhador amarrado, frustrado do seu direito de ir e vir. Violência e
exploração sexual também chegam a ser parte deste trágico cenário.
A permanência da escravidão
contemporânea decorre diretamente da violência e da discriminação estrutural e
histórica a que são submetidos grupos importantes da sociedade brasileira, como
bem expressou a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos, ao condenar o Estado Brasileiro no caso da Fazenda Brasil
Verde, 3 anos atrás, proibindo inclusive ao Brasil qualquer retrocesso.
Hoje, no Brasil, segundo a PNAD¹,
cerca de 14 milhões de pessoas enfrentam o desemprego total e quase 5 milhões
já caíram no desalento, palavra inventada para maquiar a desesperança que
habita quem já desistiu de procurar, em vão, algum emprego. Um público
particularmente exposto à pior exploração é o dos migrantes, especialmente dos
imigrantes, em fuga das graves crises econômicas, bélicas ou ambientais em seus
países. Chegam a um Brasil tido como acolhedor, porém com estruturas hostis e
pouco abertas aos princípios da solidariedade, incluindo ondas de discriminação
e xenofobia.
O trabalho escravo viola a
grandeza da pessoa humana e destrói a imagem que Deus imprimiu em seus filhos e
filhas. Ele recusa a liberdade, em seu sentido amplo, àqueles vulneráveis entre
os vulneráveis, que Cristo justamente veio para libertar (Gl 5,1). Ele se
constitui em uma das piores ofensas aos direitos e à dignidade da pessoa
humana. Quando a resposta do governo se resume em impunidade e desmonte de
políticas garantidoras de direitos, é nosso próprio Estado democrático de direito
que é ferido mortalmente.
No dia 28 de janeiro e na semana
nacional do combate ao trabalho escravo, importa destacar o compromisso de
todas as pessoas que, no serviço público e na sociedade civil, continuam se
esmerando na prevenção e na repressão ao trabalho escravo, e na busca por vida
digna aos que sobreviveram à exploração.
A Comissão Pastoral da Terra e a
Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano, da
CNBB, denunciam esse modelo que concentra riqueza às custas do suor de
trabalhadores e trabalhadoras. Nos colocamos ao lado daqueles que têm sido
protagonistas na luta contra a escravidão, na promoção de transformações
sociais estruturais, visando à construção de uma economia e de uma sociedade
que promovam a igualdade e a justiça, inclusive ambiental.
O pior cego é aquele que não quer
enxergar. Sigamos inspirados pela coragem profética que moveu Dom Pedro
Casaldáliga (que completará 92 anos no próximo dia 16 de fevereiro, naquele
mesmo espírito de “romper todas as cercas”), quando, em 1971, denunciou ao
mundo as práticas de escravidão em vigor no Brasil.
Igual ao samaritano do evangelho,
deixemo-nos abrir o olho, sentir em nossa carne a dor alheia, e tomar atitude,
para ninguém virar escravo neste chão, como nos convida a próxima Campanha da
Fraternidade.
Não nos calemos diante das
injustiças, prossigamos, aqui e agora, como sonhadores e construtores de
utopia, deste outro mundo possível, conforme ao sonho do Deus dos pobres, o
Deus de Jesus-Cristo!
Brasília, 24 de janeiro de 2020
Comissão Pastoral da Terra &
Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano
______
¹ Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua.